domingo, 1 de junho de 2014

O PRINCÍPIO DO NO BIS IN IDEM NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Artigo publicado na Revista: Direito, Justiça e Cidadania - Santiago - V1 - n9 (jan/dez) 2012.

ISSN: 1808-0774 - páginas 87 à 97

O PRINCÍPIO DO NO BIS IN IDEM NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

THE PRINCIPLE OF THE BIS IN IDEM IN CRIMINAL LAW BRAZILIAN

Dione Micheli de Freitas Pedroso Immich[1]
Vladmir Haag Medeiros[2]


RESUMO

O presente artigo aborda o princípio do No Bis In Idem e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Tal princípio é previsto – tacitamente, para parte da doutrina - pelo Código Penal Brasileiro em seus artigos 8º, em que tratada a computação e a atenuação da pena – 42, em que tratada a detração da pena – e pelo artigo 61, em que aborda as circunstâncias agravantes. Através de análise de pesquisa bibliográfica sobre o tema, são tecidas breves considerações, bem como uma abordagem respeito das consequências da aplicabilidade do princípio em questão.

Palavras-chave: Direito Penal, princípio, no bis in idem, atenuação, detração, agravante.

ABSTRACT

This article discusses the principle of No Bis In Idem and its application in the Brazilian legal system. This principle is laid down - tacitly, for part of the doctrine - the Brazilian Penal Code in its Article 8, which dealt with the computation and mitigation of the penalty - 42, in which treated detraction pen - and Article 61, which addresses the aggravating circumstances. Through analysis of literature on the subject, are woven brief considerations, as well as an approach regarding the consequences of the applicability of the principle in question.

Keywords: Criminal Law, principle, no bis in idem, attenuation, detraction, aggravating.



1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo tem por escopo abordar sobre o Princípio do No Bis in Idem, definindo-o e identificando suas características de aplicabilidade previstas no Código Penal.
Para tanto, buscou-se fundamentar sobre a importância dos Princípios Gerais do Direito para o ordenamento jurídico em todos os seus ramos, tendo em vista que estes são instrumentos essenciais para a interpretação e aplicação das normas.
Desta forma objetiva-se também abordar sobre os Princípios Fundamentais do Direito Penal apontando seus principais objetivos, bem como analisar alguns artigos do Código Penal Brasileiro em que é prevista a utilização do princípio em questão, demonstrando-se a importância da temática proposta, trazida a estudo pela doutrina pátria, embora tacitamente prevista no ordenamento jurídico vigente.
Procura-se, ainda, citar, ainda que de forma sucinta, aspectos da temática proposta desde suas concepções constitucional e processual.


2 Princípios Gerais do Direito

Falar sobre os Princípios gerais do Direito, não é nada fácil. Exige muito estudo e atenção para não perder o foco da temática, devido ao fato de possuir uma vasta doutrina, muito embora contraditória entre alguns autores.

Conceituar princípios gerais de Direito é tarefa árdua que se espalha em inúmeras teorias, nem sempre conclusivas. A matéria é de ordem filosófica. A enumeração das fontes do direito costuma encerrar-se com a menção a esses princípios. Nosso legislador, a exemplo de outras legislações, coloca os princípios gerais de direito como fonte subsidiária, no citado art. 4a da Lei de Introdução ao Código Civil, como último elo a que o juiz deve recorrer perante a lacuna legal.[3](VENOSA, 2009, p. 141)

         Considerados também como fontes do Direito, apesar de apresentarem-se de forma implícita no transparecer das normas do ordenamento jurídico e trazidos em sua grande maioria apenas na doutrina, eles são considerados instrumentos norteadores para a aplicação das normas de maneira justa, pois se mostram de maneira ampla dentro do sistema jurídico ao jurista.
        
Segundo Venosa, Miguel Realle conceitua os princípios com facilidade:

[...] princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática. (REALLE, apud VENOSA, 2009, p. 143).

         De acordo com o referido autor, é quase impossível enumerar todos os princípios que norteiam as normas, sendo que a interpretação das mesmas irá depender essencialmente da vivência do julgador.

É tarefa inútil, por ser impossível, definir e catalogar esses princípios. São regras oriundas da abstração lógica que constitui o substrato comum do Direito. Por ser um instrumento tão amplo e com tamanha profundidade, sua utilização é árdua para o julgador, pois requer vivência e traquejo com conceitos abstratos e concretos do Direito, além de elevado nível cultural.
(VENOSA, 2009, p.142).
     
         Contudo ele realiza um paralelo de correntes, que segundo BATALHA pretendem identificar tais princípios:

Para citarmos algumas correntes já aqui acenadas, ora os autores propendem para identificá-los com o direito natural, ora com princípios de equidade, ora com princípios fundamentais da organização social e política do Estado. Para a corrente legalista ou positivista, os princípios gerais de Direito são aqueles norteadores do ordenamento, extraídos das diversas regras particulares. Para os jusnaturalistas, esses princípios se identificam com o Direito natural, como reflexos de leis permanentes da natureza humana e da natureza das coisas. Para outros, esses princípios apresentam um fundamento decorrente da própria estrutura política do Estado, estando na base do direito legislado ou do ordenamento positivo. (BATALHA, apud VENOSA, 2009, p.142).

         Em contraposição, STRECK afirma que os Princípios Gerais do Direito, não possuem uma definição certa, e sim, uma vasta contextualização trazida pela doutrina com o intuito de auxiliar na interpretação e aplicação da mesma.

Os Princípios gerais do Direito não tem conceito definido. Alguns doutrinadores dizem que os princípios correspondem a normas de direito natural, verdades jurídicas universais e imutáveis, inspiradas no sentido de equidade[4]. (SOARES de MELLO, apud STRECK, 2005, p.108).

Já DINIZ, por seu turno, afirma que os princípios gerais do Direito são decorrentes de normas do ordenamento jurídico e derivados de ideias políticas, sociais e jurídicas.[5]
         Em todos os ramos do ordenamento jurídico, os princípios possuem um alto teor de importância de forma paralela embora não equivalente às Leis. Trata-se de instrumentos que auxiliam na aplicação e interpretação das regras.
         ÁVILA traz um amplo estudo sobre a importância dos Princípios para o ordenamento Jurídico, referindo-se aos mesmos como:

Os princípios remetem o intérprete a valores e a diferentes modos de prover resultados. Costuma-se afirmar que os valores dependem de uma avaliação eminentemente subjetiva. Envolvem um problema de gosto (matter of taste). Alguns sujeitos aceitam um valor que outros rejeitam. Uns qualificam como prioritário um valor que outros reputam supérfluo. Enfim, os valores, porque dependem de apreciação subjetiva, seriam ateoréticos, sem valor de verdade, sem significação objetiva. (ÁVILA, 2011, p. 64).[6]

         Assim sendo, os princípios são de suma importância, tanto no preenchimento de lacunas, quanto no aprofundamento da interpretação de um caso concreto. Trata-se de uma contextualização muito mais ampla do que a norma propriamente dita, de modo a auxiliar na interpretação da mesma.
         ÁVILA traça, ainda, um paralelo entre princípios e normas, trazendo suas principais distinções.

A distinção entre categorias normativas, especialmente entre princípios e regras, tem duas finalidades fundamentais. Em primeiro lugar, visa a antecipar características das espécies normativas de modo que o intérprete ou o aplicador, encontrando-as, possa ter facilitado seu processo de interpretação e aplicação do Direito. Em consequência disso, a referida distinção busca, em segundo lugar, aliviar, estruturando-o, o ônus de argumentação do aplicador do Direito, na medida em que uma qualificação das espécies normativas permite minorar-eliminar, jamais- a necessidade de fundamentação, pelo menos indicando o que deve ser justificado. (ALEXY, apud ÁVILA, 20011, p. 65).

         Contudo, os princípios visam a auxiliar as normas de maneira subsidiária, para que o intérprete ou aplicador do Direito as possa utilizar de maneira justa. No entanto, são eles que sustentam as regras.
         Colaborando com essa ideia MELLO assim leciona:

[...]os princípios são os mandamentos nucleares, o alicerce do sistema jurídico, eis que seriam base e diretriz para a correta compreensão dos mesmos. Somente pelo auxílio dos princípios seria possível ao interprete alcançar uma visão unitária do ordenamento jurídico. Desse modo, a violação de um princípio seria muito mais grave do que a transgressão de uma regra, eis que implicaria uma ofensa não a um mandamento especifico, mas ao sistema como um todo.[7] (MELLO, apud CRUZ, 2007, p.277).

         Com tal afirmação, fica muito clara a real importância dos princípios, tanto que é possível visualizarmos estes em todo ordenamento jurídico, mesmo que implicitamente.

3 Princípios Fundamentais do Direito Penal

         Como já foi dito antes, os princípios são instrumentos norteadores e fundamentadores de todo o ordenamento jurídico em todos os seus ramos. São eles que determinam os valores de uma determinada sociedade, sendo também fundamentais para o Direito Penal.

O Direito Penal, como também os demais ramos do ordenamento jurídico, fundamentam-se em determinados princípios, como elementos essenciais e diretores, em sua maioria jurisdicizados, seja em nível constitucional, seja não constitucional. Derivados, em sua origem, dos valores ético-culturais e jurídicos vigentes em uma determinada comunidade social, numa certa época, foram se impondo num processo histórico-político contínuo como basilares à sociedade democrática.[8] (PRADO, 2013, p. 155-156).

         Seguindo essa linha de raciocínio, o autor referido anteriormente ressalta que os princípios no Direito penal são essenciais e indispensáveis no que se refere à aplicação da norma penal, de modo que tais princípios servem como subsídio limitador do poder punitivo do Estado.

Os princípios penais constituem o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito – suas categorias teoréticas -, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese: servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal. (PRADO, 2013, p.156).
        
Deste ponto de vista é possível observar que os princípios são considerados pressupostos basilares no exercício do Direito Penal, vinculando todas as normas ao eixo constitucional, constituindo premissas conceituais com maior teor de abstração, ao contrário das leis que são normalmente relatos objetivos.
No Direito Penal, os princípios fundamentais se dividem em três grupos:

[...] princípios de proteção, delimitadores dos conteúdos de tutela penal (princípios da fragmentariedade, da lesividade, do interesse público e da correspondência com a realidade); princípio da responsabilidade, relacionados com requisitos necessários para se exigir a responsabilidade penal (princípio da segurança jurídica, da responsabilidade pelo fato, da imputação, da culpabilidade e da jurisdição), e princípios da sanção, configuradores das reações penais (princípios da humanidade das penas, teleológico ou dos fins da pena, da proporcionalidade e do monopólio punitivo estatal). (PRADO, 2013, p.158).

         Contudo, os princípios fundamentais do Direito Penal, não só sustentam seu emaranhado de normas, mas também fragmenta o que é de sua competência, objetivando possibilitar uma melhor interpretação diante de um caso concreto.

4 O No Bis in Idem no Direito Penal

Um dos princípios fundamentais do direito penal nacional e internacional é o princípio da vedação a dupla incriminação ou princípio no bis in idem. Tal princípio proíbe que uma pessoa seja processada, julgada e condenada mais de uma vez pela mesma conduta.
Tendo em vista a necessária observância de princípios e regras de nosso ordenamento jurídico à Constituição Federal, fonte de validade de toda norma, importa apontar a origem do princípio em questão:

É certo que a Constituição Federal de 1988, ao estatuir a garantia da coisa julgada (art. 5°, XXXVI) procurou assegurar a economia e certeza jurídica das decisões judiciais transitadas em julgado, servindo, em outro giro, como fundamento do princípio “ne bis in idem”, em seu aspecto processual. Por outro lado, o princípio da legalidade, insculpido na Carta Magna, em seu artigo 5°, XXXIX, serve de base ao aspecto substancial do princípio “ne bis in idem”, concretizando os valores da justiça e certeza a ele inerentes[9] (MASCARENHAS, 2009, p.3).


No Direito Penal, tal princípio atua como forte intervenção no que se refere à promoção imensurável de Justiça, que é o principal objetivo do Direito, bem como a valorização da pessoa humana, visando a preservar suas garantias.

O princípio ne bis in idem, que vem do direito romano e faz parte da tradição democrática do direito penal, nada mais é do que corolário do ideal de justiça, uma vez que determina que jamais alguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato.[10] (SILVA, 2008, p.2).

         Coadjuvando com esta linha de raciocínio, SILVA expõe que este princípio não se encontra de expressamente previsto no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que é analisado pela doutrina. Esta, mesmo não sendo considerada fonte do Direito, apresenta extrema relevância para tomada de decisões dos julgadores em análise de casos concretos e, consequentemente, na fixação de penas, para que não se produzam inadequações e desacertos sem razão por ocasião de julgamento. 

Ainda segundo o autor:

Tal princípio não está consolidado expressamente em preceito constitucional (se comparado com o modelo constitucional alemão, que o prevê expressamente3). Porém, o próprio Supremo Tribunal Federal, em decisão do Pleno, cujo acórdão é da lavra do Ministro Ilmar Galvão, ressaltou que: “A incorporação do princípio do ne bis in idem ao ordenamento jurídico pátrio, ainda que sem o caráter de preceito constitucional, vem, na realidade, complementar o rol dos direitos e garantias individuais já previsto pela Constituição Federal, cuja interpretação sistemática leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do dever de acusar.” (SILVA, 2008, p.2).
        
Neste contexto, pode-se afirmar que tal princípio incide tanto no âmbito processual quanto no âmbito material. Sobre o tema, afirma MASCARENHAS:

No tocante ao enfoque material, o instituto encontra fundamento nos valores da justiça e certeza das decisões, privilegiando o status de inocência, e se manifesta através da extraterritorialidade e do princípio da legalidade. Quanto ao aspecto processual, o princípio se baseia, mormente, em questões de ordem prática, quais sejam, economia e certeza com a finalidade de se evitar a eternização das demandas, manifestando-se na garantia da coisa julgada e no instituto da litispendência. Vale ressaltar que, no primeiro caso, o princípio possui caráter absoluto, e no segundo, possui caráter relativo.(MASCARENHAS, 2009, p.4)

No mesmo sentido, abordando o tema sob o prisma do Direito Penal, ANDRÉ ESTEFAM trata o princípio do ne bis in idem como uma vedação da dupla incriminação do réu, de modo que ninguém pode ser processado ou condenado mais de uma vez pelo mesmo fato. O referido autor refere que, na instauração de um processo por um delito idêntico a um fato anterior, há a caracterização do instituto da litispendência; ainda, se o fato já foi julgado definitivamente, há clara – e inaceitável - ofensa à coisa julgada, conforme preceituam os artigos 95, incisos III e V, e 110, ambos do Código de Processo Penal. O autor aborda o tema, ainda, do ponto de vista da qualificação do delito:

Outro aspecto inerente ao princípio em estudo consiste na proibição de que o mesmo fato concreto seja subsumido a mais de uma norma penal incriminadora. Assim, por exemplo, se o agente defere diversos golpes de faca contra uma pessoa, num só contexto, visando mata-la, objetivo atingido depois do trigésimo golpe, não há vinte e nove crimes de lesão corporal e um homicídio, mas tão somente um crime de homicídio (o meio utilizado pelo agente pode, contudo, qualificar o delito, tornando mais severa a pena imposta)[11].(ESTEFAM, 2010, p.122).

PRADO, por seu turno, apresenta similar entendimento sobre a questão, focando-a, no entanto, no aspecto da limitação do poder punitivo do Estado, acertadamente:

O princípio ne bis in idem ou non bis in idem constitui infranqueável limite ao poder punitivo do Estado, Através dele procura-se impedir mais de uma punição individual – compreendendo tanto a pena como o agravante – pelo mesmo fato(a dupla punição pelo mesmo fato)[12].(PRADO, 2008, p.148).

CAPEZ refere:

Há litispendência quando uma ação repete outra em curso. No processo penal isso se verifica sempre que a imputação atribuir ao acusado, mais de uma vez, em processos diferentes, a mesma conduta delituosa. Fundamenta-se no princípio de que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato: princípio do non bis in idem. Nesse caso, prevê a lei a exceção de litispendência, evitando-se o trâmite em paralelo de dois processos idênticos.[13](CAPEZ, 2012, p.485)

O mesmo autor também relaciona o no bis in idem com a coisa julgada:

A exceção de coisa julgada (CPP, art. 95, V) funda-se também no princípio non bis in idem. Transitada em julgado uma decisão, impossível novo processo pelo mesmo fato. Nesse caso, argui-se a exceptio rei judicatae. A coisa julgada nada mais é do que uma qualidade dos efeitos da decisão final, marcada pela imutabilidade e irrecorribilidade. (CAPEZ, 2012, p.488)

PRADO discorre que, a temática encontra-se referida de maneira indireta nos artigos 8º e 42. Com relação à pena cumprida no estrangeiro, prevê, em seu artigo 8º, que “A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas.”. Isto significa que, se o agente cumpriu pena no estrangeiro - sendo o delito considerado crime também no Brasil e aqui for julgado -, sua pena será atenuada se forem fatos com penas de naturezas diferentes e computada[14], se idênticas.
Na obra de NUCCI[15], faz referência ao princípio, mencionando o artigo 8º da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, em que aborda ser lógico que, se não há a possibilidade de processar novamente quem já foi absolvido, ainda que surjam novas provas, não é admissível punir o agente pelo mesmo delito.
Colaborando com essa ideia, JESUS aplica a definição deste princípio como “regra”, ao contrário da maioria da doutrina e dá outra visão do mesmo:

Dispõe o art. 8.o do CP que "a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas". O dispositivo cuida de diversidade qualitativa e quantitativa das penas.
A primeira parte trata da diversidade qualitativa; a segunda, da quantitativa. Temos, pois, duas regras:
1.a) a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas; 2.a) a pena cumprida no estrangeiro pelo mesmo crime é computada na imposta no Brasil, quando idênticas. Assim, o fato de ter o sujeito cumprido a pena imposta pelo julgado estrangeiro influi, no Brasil, de duas formas: 1.a) na determinação da pena concreta, atenuando-a, se a pena já cumprida for diversa em qualidade da que a lei brasileira comina para o mesmo crime (pena de multa cumprida no estrangeiro e privativa de liberdade a ser imposta no Brasil); 2.a) na execução da pena imposta no Brasil, sendo nela computada, se idênticas. No primeiro caso, a atenuação é obrigatória, mas o quantum fica a critério do juiz. No segundo, cabe ao julgador apenas abater da pena a ser executada, se maior, o quantum já cumprido no estrangeiro.
Exemplo de diversidade qualitativa: Um sujeito, no estrangeiro, pratica crime contra a fé pública da União (brasileira), incidindo a extraterritorialidade incondicional de nossa lei penal (art. 7.o, I, b). É condenado nos dois países (art. 7.o, § 1.o): multa no estrangeiro e reclusão no Brasil. Satisfeita a multa no estrangeiro, fica atenuada a pena imposta no Brasil.
Exemplo de diversidade quantitativa: no caso anterior, o sujeito é condenado no estrangeiro a um ano e no Brasil a dois anos de reclusão. Cumprida a pena no estrangeiro, o condenado terá no Brasil a cumprir um ano de reclusão.
Deve ser observado o disposto no art. 7.o, § 2.o, d, parte final, do CP. Se o sujeito, pelo mesmo crime, já cumpriu pena no estrangeiro, nos termos da referida alínea d, é inaplicável a nossa lei penal.[16](JESUS, 1998, p.117)

Desta forma, o fato de um indivíduo ser condenado criminalmente e efetivamente cumprir pena no estrangeiro influi substancialmente em sua condição jurídica no Brasil no que se refere ao cálculo da pena aqui sentenciada.
Já o artigo 42 do Estatuto Penal está relacionado ao instituto da detração:

 Art. 42 - Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.

NAGIMA relaciona a detração ao poder punitivo do Estado:

A detração visa impedir que o Estado abuse de poder-dever de punir, sujeitando o responsável pelo fato punível a uma fração desnecessária da pena sempre que houver a perda da liberdade ou a internação em etapas anteriores à sentença condenatória[17]. (DOTTI, apud NAGIMA, 2004, p.1).
        
CAPEZ exemplifica a Detração penal da seguinte forma:

Nos termos do art. 42 do CP, só cabe detração penal na hipótese de prisão provisória. Assim, nos casos em que for decretada a prisão preventiva, esse tempo poderá ser descontado da futura pena privativa de liberdade pelo juízo da execução, no momento de se proceder ao cálculo de liquidação de penas. Mesmo quando a prisão preventiva for cumprida no domicílio do agente, será admissível a detração, já que se trata de prisão preventiva cumprida no domicílio do acusado, por se encontrar esse dentre as hipóteses excepcionais previstas no art. 318 do CPP (maior de 80 anos; extremamente debilitado em razão de doença grave; imprescindível aos cuidados de menor de 6 anos ou deficiente; gestante no sétimo mês de gravidez ou com gravidez de risco). (CAPEZ, 2012, p.337)

Complementando a exemplificação de CAPEZ, GONÇALVES traz ainda outros exemplos com relação à aplicação da Detração:

A detração aplica-se qualquer que tenha sido o regime de cumprimento fixado na sentença (fechado, semiaberto ou aberto). Também se aplica a algumas penas restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana) porque estas substituem a pena privativa de liberdade pelo mesmo tempo aplicado na sentença (art. 55). Suponha-se que uma pessoa ficou presa 6 meses aguardando a sentença e foi condenada a 8 meses de detenção, sendo que o juiz substituiu a pena privativa de liberdade por prestação de serviços à comunidade (pena restritiva de direitos). A prestação de serviços teria de ser feita por 8 meses, mas, descontando-se o tempo em que o condenado ficou preso, terá de cumprir apenas os 2 meses faltantes. (GONÇALVES, 20012, p.287-288)

Ainda segundo este autor, não cabe detração para pena de multa, pois a reforma trazida pela Lei nº 9.268/96, que alterou a redação do art. 51 do Código Penal vedando a conversão da pena de multa em detenção, além do que o artigo 42 é taxativo e não menciona tal possibilidade. Em relação ao sursis, também é incabível a detração porque se trata de pena substitutiva que não guarda proporção com a pena privativa de liberdade aplicada na sentença. Em contraposição à PRADO, fala que o Código Penal possui apenas dois artigos que trazem o princípio do no bis in idem.
 GONÇALVES afirma que o mesmo possui outra previsão, no artigo 61, caput, quando versa sobre as agravantes, que não devem estar presentes no tipo penal.

[...] por esse princípio, determinada circunstância não pode ser empregada duas vezes em relação ao mesmo crime, quer para agravar, quer para reduzir a pena. Assim, quando alguém comete um homicídio por motivo fútil, incide a qualificadora do art. 121, § 2º, II, do Código Penal, mas não pode ser aplicada, concomitantemente, a agravante genérica do motivo fútil, prevista no art. 61, II, a. Essa agravante, portanto, será aplicada a outros crimes em que a futilidade da motivação não esteja prevista como qualificadora.[18] (GONÇALVES, 20012, p.32-33)

         Estas agravantes são consideradas pela Doutrina, como “agravantes genéricas”, onde tem por objetivo evitar que o agente seja punido duas ou mais vezes pelo mesmo fato. Neste sentido, o juiz ao se deparar com um caso concreto onde, o agente praticou uma circunstância prevista do Art. 61 do código penal, e esta ainda assim constar do tipo praticado caberá ao juiz não leva-la em consideração, aplicando somente o que está previsto no tipo.
Assim, as três previsões legais encontram-se fortemente fundadas no princípio do No Bis In Idem, tendo todas elas, a função de limitar a atuação do poder punitivo estatal, agindo, de forma direta, na defesa de direitos e garantias individuais.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Princípios são instrumentos através dos quais são interpretadas e aplicadas as normas de todo ordenamento jurídico. Sem eles, tanto o legislador quanto o aplicador da norma, não teriam fundamentação suficiente para alcançar o máximo de justiça ao caso que se lhe colocar à análise. O primeiro, por que as normas são criadas em função das consequências que geram, de acordo com determinados casos concretos e em determinado tempo e sociedade. O segundo, pois depende de uma boa fundamentação para justificar suas decisões, devido ao fato de que as normas em si são suficientemente objetivas.
O princípio do No Bis in Idem encontra-se diretamente ligado à limitação do poder punitivo do Estado, bem como à valorização e ao resguardo de garantias fundamentais da pessoa humana. Deste modo, mantém valorosa função de proteção ao status dignitatis do homem, na medida em que veda a possibilidade de que alguém seja processado e, principalmente, condenado em duas oportunidades pela prática do mesmo fato criminoso.
Tal Princípio encontra-se inicialmente implícito da Constituição Federal dentro das garantias fundamentais do indivíduo com objetivo de acautelar a segurança jurídica das pessoas com relação à atuação estatal.
Por fim, no Código Penal, o princípio do No Bis in idem é referido de maneira tácita nos artigos 8º, 42 e 61. No que se refere ao primeiro disposto, com relação a crimes praticados no estrangeiro, o agente, ao retornar ao Brasil, para que tenha sua pena calculada de maneira justa, sendo esta pela prática de mesmo crime, terá ela atenuada se forem diversas e computadas se forem idênticas. A respeito do segundo disposto, o mesmo tem por objetivo impedir excessos do Estado ao sentenciar uma pena. Com relação ao terceiro, tal previsão tem por objetivo distinguir as agravantes do artigo 61 das agravantes já descritas no tipo penal, com intuito de não permitir que o agente tenha sua pena aumentada pelo mesmo fato.
Assim, percebe-se que a previsão, ainda que tácita, do Princípio do No Bis in Idem, em nosso ordenamento jurídico, tanto para o direito material quanto para o direito processual, traz ao cidadão a garantia da vedação de uma série de injustiças, sobretudo na medida em que se apresenta como verdadeiro fator de limitação do poder punitivo estatal, de modo a fundamentar a previsão da dignidade da pessoa humana em casos concretos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, Saraiva, 1993.

ESTEFAM, André. Direito Penal, volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

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STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 6ª ed. – Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2005.

VENOSA, Sílvio. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. - 2. ed. -6. reimpr. - São Paulo: Atlas, 2009.







[1] A autora é Acadêmica do Curso de Direito III Semestre, Licenciada em Matemática pela Universidade Regional Integrada-URI-Santiago e Empresária no ramo de Tecnologia da Informação. E-mail: michellipedrozo@gmail.com.
[2] O autor é Professor das disciplinas de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Campus Santiago, Especialista em Direito Público e Doutorando em Direito Penal, além de Delegado de Polícia Civil no RS. E-mail: vhmedeiros@hotmail.com.
[3] VENOSA, Sílvio. Introdução ao estudo do direito : primeiras linhas. - 2. ed. -6. reimpr. - São Paulo: Atlas, 2009.
[4] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 6ª ed. – Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2005.
[5] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, Saraiva, 1993.
[6] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos 12ª ed. São Paulo Editora Malheiros Editores LTDA, 2011.
[7] CRUZ, Álvaro. Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. Constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
[8]PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral, arts 1º a 120-12 ed.rev.atual.ampl.-São Paulo: RT, 2013.
[9]MASCARENHAS, Marcella Alves. O Princípio “Ne Bis In Idem” nos Âmbitos Material e Processual sob o Ponto de Vista do Direito Penal Interno. Revista de direito da unigranrio. Volume 2. Número 2  2009.
[10]SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Inconstitucionalidade do art. 40, inciso VII, da lei de drogas por inobservância ao ne bis in idem e violação à proibição de excesso. BDJur, Brasília, DF, 29 jul. 2009.
[11]ESTEFAM, André. Direito Penal, volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.O autor é Promotor de Justiça e Professor de cursos preparatórios para concursos.
[12] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1, parte geral arts. 1º a 120. 8ª ed. rev., atual. E ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. – (Curso de Direito Penal Brasileiro; V1).
[13] CAPEZ, Fernando Curso de processo penal . – 19. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012.
[14] Computar: calcular, contar, orçar, isto é, fazer o cálculo referente ao tempo em que o acusado esteve preso anteriormente e o tempo em que foi imposto na sentença final.
[15] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte geral: Parte Especial – 4ª ed. rev. Atual e ampl. 3 tir – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
[16] JESUS, Damásio. Direito penal – Parte geral. - São Paulo Saraiva, 1998. Conteúdo: V. 1. Parte geral. 21. ed. rev. e atual em formato digital.

[17] NAGIMA, Irving Marc Shikasho. Da detração penal. Revista Jus Navigandi, dez. 2004.
[18] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal, parte geral – 18. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012. – (Coleção sinopses jurídicas; v. 7)



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